segunda-feira, 25 de julho de 2016

O CÓRREGO

Fico a lembrar de coisas, que povoam a minha mente. Coisas, assuntos, ou ações, que podem parecer pouco significativas, mas reais. O dia acabava de nascer e nós seguíamos para o banho de riacho. Guardo até hoje a imagem daquela água tão cristalina, que se via por baixo uma mistura de pequenas pedras brancas e areia. Eu andava de um lado para o outro tentando pegar alguma das libélulas que pousavam nos galhos das árvores. Essa ação exigia certa resistência de minha parte, porque a areia parecia movediça. Em cada passada, as minhas pernas que, de fato, eram curtas, ficavam enterradas até a metade nas pisadas fofas. Como toda criança, eu era inquieta. Vendo a minha traquinagem, Maria Cirilo, a responsável por mim, temerosa de não alcançar-me com os olhos, pois ocupava-se lavando algumas peças de roupas, sem nenhuma didática para conseguir acomodar-me e, sem discernimento algum, passava a amedrontar-me: 
― Olha que a Siricora vem te pegar! Dizia Maria. 
― Se você ficar quieta, ela não vem não! Retrucava ela. 
Siricora! O que seria isso? Uma ave, um pássaro, uma bruxa? Até hoje não sei; nunca consegui descobrir, mas sei como me sentia com aquela ameaça. O pavor era tão grande, que perdia o prazer de desfrutar da beleza daquele maravilhoso lugar. Para termos acesso ao córrego, percorríamos por caminhos alagadiços e, em algumas partes, pedregosos. Ultrapassávamos uma porteira, tendo que escalar por sobre as madeiras da mesma, porque ela se encontrava trancada com um enorme cadeado. Deu para perceber que era uma propriedade privada, mas a Maria era sobrinha do dono, então, nenhum problema com a nossa invasão ao bem, que pertencia ao senhor João Lourenço. 
Seu João Lourenço, assim como era tratado por todos da redondeza, era um homem de muita posse e de muitas propriedades. Ali no Canto, nome do povoado em que ele residia, era conhecido como o homem mais abastado; propriedade de muito valor, cabeças de gado que não se contavam e fartura muita em sua casa! Casado com dona Chicuta, mulher bonita e falante. Usava uns vestidos estampados e de saias rodadas, sandálias rasteiras com detalhes dourados e tinha cabelos longos, mas sempre penteados para cima e feito um coque no alto da cabeça. Era uma pessoa muito distinta, como dizia meu pai. Já o tio da Maria era um homem de poucas palavras. Ao contrário de sua esposa, ele se vestia sem muito zelo, mas usava um relógio dourado, que demonstrava o poder de suas finanças. Na lida, botas de plástico, para facilitar a sua caminhada pelas lavouras e currais. Era um homem branco, de cabelos castanhos, pele enrugada pelo tempo, pouco calvo e mãos grossas de quem pega no pesado, mesmo tendo muitos trabalhadores para dividir os afazeres. Diziam por lá que ele era um homem seguro e que era difícil ver a cor do seu dinheiro. Isso era bem verdade! O pai do meu cunhado não costumava gastar o que ganhava. O que ele gostava mesmo era de abastecer o seu cofre. Quando ele o abria, tanto na parte superior, quanto na debaixo, tudo o que se via era dinheiro empilhado. Ele fazia uns blocos e os amarrava com ligas amarelas. Era um homem que sabia ganhar dinheiro, mas desatento para a evolução da moeda. Achava que, se o que lucrasse ficasse guardado em casa, nada teria a perder. Tempos de muitas variações na moeda brasileira: cruzeiro, cruzeiro novo, cruzeiro, cruzado, cruzado novo, cruzeiro, cruzeiro real... Ele não se deu conta da transformação cambial e muito menos de atualizar a sua fortuna. Então, seu João morre e vem à necessidade da partilha dos bens. Aí vem o espanto; a sua grande fortuna de nada valia, porque havia se desvalorizado com as modificações ocorridas na nossa moeda. Tantas cédulas destinadas ao fogo, essa era a única serventia! 
Maria era uma mulher de fibra capilar lisa e preta. Tinha um belo sorriso, além de sorrir com os olhos. Pessoa alegre e de bem com a vida. Não era magra, mas tinha a cintura fina e quadris largos. Mulher humilde, sem muito aprontamento, porque a sua condição financeira não lhe permitia. Vivia pela casa desse tio, ajudando nos serviços domésticos. Também, quando lhe sobrava tempo, auxiliava em seus afazeres, a minha irmã, que era casada com o seu primo.
Bons tempos aqueles! Apreciar aquela água correndo por entre as altas árvores de copas ralas, poucas folhagens e troncos finos! Muitas folhas secas caídas pelo chão úmido e algumas levadas pelo vento, flutuavam pela correnteza sem destino identificado. Aquele terreno era um local sem moradia e o que se ouvia era: o barulho da água, o sussurro do vento, o balançar das folhas, o canto das cigarras, dos pássaros, o mugir e o chocalho do gado nas capoeiras. 
Na volta do banho, não sei se era a fome, eu sentia o cheiro do tempero das comidas, que borbulhavam nas panelas, por todos os lados. E, ao entrar na casa da minha irmã, o cheiro aumentava. A sua mão na cozinha era sem defeito. Quando ela me chamava para comer, era tudo tão quente, que eu ficava com calor. Ela sabia, lógico; então abria uma porta que dava para o oitão, colocava o meu prato no chão e pedia que eu ali me sentasse. Agora era possível, eu levar a colher à boca e começar a saborear as delícias que nele estavam. 
Coisas de infância, reminiscências contidas, agora por mim contadas. Verdades bem vividas, que nem o medo conseguiu bloquear. E hoje, com prazer, partilho esta visita imaginária ao meu aprazível córrego.

Airla Barboza

NO SERTÃO TEM CHICO CUNHA

- Tô aqui todo entrevado! 
Me diz ali velho amigo 
Que já não suporta mais 
A desdita do inimigo 
- Oh dor infeliz, irmão 
Vivo com a cara no chão 
Que nada ocorra contigo! 

Esse tal de Chico Cunha 
Me pegou foi bem de jeito 
É uma dor infeliz 
Bem aqui no meio do peito 
Dói cada nervo ou emenda 
Tô abrindo da contenda 
Mandaram fazer bem feito! 

O negócio não tem fim 
Eu já me perdi na data 
Há meses que já não durmo 
Comprimido já se cata 
Lá em casa todo mundo 
Saco já não tem mais fundo 
É sério, não é cascata! 

Eu já fui a hospital 
E nada de ter um jeito 
Passam dias e semanas 
E não vem o tal efeito 
Tô aqui que nem zumbi 
Dá vontade de sumir 
Eu largo já esse eito! 

João Teles

domingo, 17 de julho de 2016

RAIMUNDO GOMES E JOÃO BATISTA GOMES

Wilson, eu vou lhe contar uma história, mas você não poderá contar para ninguém. Você sabe que o papai era muito bonito e faceiro, e o tio Raimundo Gomes muito bom, mas era feio e “semvergoin”. Os cabelos do papai já estavam esbranquiçados, e ele pediu ao tio Raimundo, para trazer de Fortaleza um produto que fizesse eles voltarem a serem pretos e bonitos, como foram anteriormente.
Vindo de Fortaleza, ao chegar à nossa casa na Palma, o tio Raimundo me entregou, e disse ser o produto que o papai lhe pedira, para tingir o cabelo. Abri o vidro, toquei, e confesso ter achado parecido com uma brilhantina, de cor muito escura, e ele disse-me ainda que eu passasse, quando ele fosse à missa, na Festa da Padroeira. Para atendê-lo, assim eu procedí.
O tio Raimundo, você sabe, não costumava ir à missa, mas nesse dia ele foi comigo e com o papai, sem ninguém desconfiar porque. Foi rindo, da nossa casa até a igreja, os dois de terno branco, que eu havia passado, e o papai feliz, com os cabêlos bem pretinhos, que chamavam atenção.
Era a Festa da Padroeira, a igreja estava lotada, o tio Raimundo ficou no patamar, eu subí para o coro com a Luzia, a Cidinha, a Jovelina, filhas da Madrinha do tio João Cristino, a Carmélia do seu Alfredo, e a Franquinha da tia Maria Gomes, aquela o Padre Ivan a desgraçou, e o papai foi para a fila bem próxima do altar.
Wilson escuta, você não era nem nascido, nos estavamos cantando a Ave Maria de Gounod, fazia muito calor na igreja, quanto o produto que eu passei nos cabelos do papai, começou a derreter. Menino, foi aquela aflicão. Quando mais o papai tentava limpar o que escorria em seu rosto, mais seu rosto ficava preto, e tentando limpar no terno, o terno ficou todo manchado.
Quando eu vi o papai naquele estado, eu parei de cantar, desci do côro e saí correndo, e o convidei para irmos para nossa casa, o pobrezinho parecendo um negativo da foto do Al Jolson, aquele cantor de jazz americano que você conhece.
Ao chegarmos no patamar da igreja, a coisa piorou, lá estavam o tio Raimundo e todos os amigos dele e do papai, rindo, morrendo de rir, por ver o teu avô naquele estado, e eu com muita raiva e muito aflita.
Da primeira vez que fui à casa do Bemfica, na hora do almoço, eu contei o ocorrido na presença do Eurico e da Nenzinha, do Amaury e da Maísa, e do próprio tio Raimundo e da tia Terta, mas tu sabes o que aconteceu? Foi pior para mim. Todos riram, mais até do que o tio Raimundo rira, quando estava no patamar da igreja, com excessão da tia Terta, que repreendeu à todos, inclusive à seu Gomes, que era como ela chamava o tio Raimundo, pela brincadeira, segundo ela, de extremo mau gosto, que ele fizera com seu irmão João Batista.
A tia Terta em seguida me abraçou, pediu-me mil desculpas pelo ocorrido, e foi em seu gesto seguido, por todos os presentes. Com o tempo o próprio tio Raimundo confessou-nos que ele mesmo preparara o produto, misturando Brilhantina Glostora com graxa de sapato preta. Mas demorou muito tempo, para eu esquecer o que o tio Raimundo Gomes fez com o “bichinho do papai”.
 
Wilson Belchior. Do Livro "O choro de um filho" (no prelo)

ADUALDO BATISTA ARAÚJO

A verdade é anterior a qualquer prova, e se manifesta, se buscada através das evidências fáticas da realidade.
Tal e qual ouvi de meu pai Otávio Belchior, palmense humilde porém conhecedor profundo da história da nossa terra, conhecimentos advindos do seu interesse por história, das funções que nela ocupou, e potencializados pelas informações colhidas com suas raízes e tradições familiares de mais de 200 anos. Contarei o que dele ouvi, aditando brevíssimos comentários a respeito do Adualdo, esse famoso senhor.
Ele era meu parente, sim, por parte de mãe. Não pôde, como erradamente afirmam, ter nascido em Coreaú, na época de seu nascimento 1910, esse nome era o do rio que banhava a Palma. Em verdade, nasceu na Palma, no local antigamente denominado Distrito de Pedrinhas, hoje Município de Moraújo, numa fazenda que a ela se chegava indo da sede de Moraújo em direção à Sesmaria do Jagarassuí, do meu tetra avô Antônio Fernandes Batista, no Campanário, na antiga Vila de Granja, hoje Uruoca.
Filho de Francisco André Araújo (Chico André) e de dona Joaquina Batista Araújo. Chico André era irmão de Francisco Manuel Araújo (Chico Manuel), ambos fazendeiros da região, e os principais responsáveis pela extinção da fauna local, pois contratavam caçadores, adiantavam-lhes dinheiro para matar todo e qualquer animal silvestre que pela frente aparecesse, e tivesse couro de valor, dentre os quais onças, gatos maracajás, raposas, veados, tejos, cobras, guaxiníns, etc. Os couros, depois de espichados e secos ao sol, eram levados de trem de Martinópoles até Massapê, onde os comercializavam, com um exportador da família Alcântara, que os revendia a outro membro da mesma família em Manaus.
Tanto Chico André como Chico Manuel tinham temperamento violento, razão pela qual muito cedo Adualdo saiu de casa. Chico André tentou por umas duas vezes mandar seus caboclos caçadores assassinar o meu parente e saudoso amigo, esse sim escritor de nomeada, Raimundo Batista Aragão (O Aragão do INPS), em virtude de uma queixa, depois comprovada como falsa, que lhe apresentara Chico Manuel. O fato só não teve fim sinistro graças à intervenção de outro fazendeiro local chamado Francisco Custódio Veras (Chico Custódio), amigo do Aragão e amigo e compadre de Manoel Florêncio, bodegueiro no Campanário.
O Adualdo era também parente do Pe. Domingos Araújo, cônego da Catedral da Sé de Sobral, além de respeitável confessor. Era considerado um menino precoce, tendo disso dado provas soberbas. Notabilizou-se por ter sido o fundador do Colégio Farias Brito e faleceu muito jovem, aos 32 anos, em 1942, morando em Fortaleza. Deixou um único filho, o hoje Dr. Adualdo Ariosto de Araújo, advogado, ainda vivo e residente no Rio de Janeiro.
Seu nascimento foi registrado por seu pai Chico André, no Cartório de Massapê, como filho de Massapê, numa das viagens com o fito maior de entregar mercadorias a seu comprador, fato que tornou Adualdo erradamente conhecido como massapeense. O registro deu-se em Massapê por ser o Cartório na época para ele de mais fácil acesso, visto que chegava lá facilmente, no trem da Estrada de Ferro de Sobral (E.F. de Sobral), vindo de Martinópolis, estação próxima das fazendas onde viviam.
 
Wilson Belchior
 
CRÔNICA
3 DE OUTUBRO (1)
Adualdo Batista Araújo (2)

Cai por sobre a grande nação brasileira o manto bendito da paz, qual nuvem celestial que descesse dos céus para derramar chuvas de alívio e graça no coração dos brasileiros. Terminou a luta fraticida --- essa serpente monstruosa --- que se enrosca em as nacionalidades, torcendo-as impiedosamente e depois lançando-as no abismo da desordem. Felizmente, porque a luta é um grande mal e acarreta funestas consequências.
Felizmente, porque é a luta civil o peior dos males e traz comsigo as peiores desgraças. Temos, entretanto, que suportá-las pois são creações inevitáveis do egoísmo humano. São pois inevitáveis. Por elas passaram os povos, mesmo os mais felizes. As nações na ânsia de progredir, e não podendo marchar dentro dos domínios pacíficos da concórdia, retrogradam, banham-se de sangue e depois prosseguem. Todos os povos aspiram a momentos mais felizes, mas para essa transição foi sempre preciso passarem dias penosos, incertos, dolorosos. Assim, precisamos exultar-nos com o fim de qualquer luta, porque todas trazem seus males. Sempre depois de qualquer luta, por menos catastrófica que tenha sido, ao lado dos que festejam alegremente a paz, soluço a legião inconsolável das viúvas e dos órfãos chorando a perda dos maridos e pais extremecidos. Ao lado da alegria estonteante dos moços, estão os cadáveres dos companheiros que morreram ingloriamente no campo de batalha.
Ao lado da alegria rumorosa do povo inconsciente, estão os prejuízos fabulosos sofridos pela nacionalidade. Mas isso não impede que exultemos, isso não manda que substituamos a alegria pela tristeza. Se assim fosse, torná-la-íamos universal. Universal, porque são companheiros inseparáveis, porque sempre, e em toda parte, caminharam juntos. Dentro do lar, dentro do indivíduo, dentro do universo. Tomaria nosso planeta o aspecto sepulcral das ruínas.
Morreríamos todos devorados por uma dor universal infinita... O mal está em, ou entregarmo-nos a uma tristeza profunda e inconsolável, ou a uma alegria despreocupada, anormal. In médio stat virtus. (a virtude está no meio) Consolemo-nos mutuamente porque todos sofremos e desse consolo mútuo, fraternal, há de nascer necessariamente o que nos falta --- A Resignação.
 
(1) Crônica publicada no periódico “O Jornal”, Ano I, n. 1, 08/12/1932, PÁG. 2, Sobral-Ceará. A crônica refere-se à rendição dos rebeldes paulistas da Revolução Constitucionalista de 1932.
(2) Adualdo Batista de Araújo é palmense (nasceu em Pedrinhas (1910), atual município de Moraújo). Foi registrado como sendo filho de Massapê. Morreu em Fortaleza no ano de 1942. Foi advogado, filósofo, professor e empreendedor, tendo fundado o Colégio Farias Brito de Fortaleza.