segunda-feira, 4 de fevereiro de 2013

Da carta cheirosa

“Marcha, soldado cabeça de papel!
Se não marchar direito, vai preso pro quartel!”

À cantiga de roda, todos os soldadinhos se cruzavam na correria daquela tarde na escola. Empunhavam suas espadas de jornal enrolado, fazendo uma coreografia um tanto desengonçada; em meio aos risos mútuos, quebravam suas “armas” – de espada a chicote. A chuva do inverno caia lá fora, trazendo uma frieza gostosa (atípica), e a umidade amolecia ainda mais os jornalecos.

Enquanto todos os meninos corriam, um dentre eles permanecia sentado a um canto (há sempre esse “estraga-prazeres”), encantado com uma tomada. Queria pegá-la, entretanto sua mãe o avisara do perigo. Ousaria teimar? Tomou em cutucar com um pedaço de palha de carnaúba, que achou não sei aonde. Dois coleguinhas viram e foram acompanhar o experimento. Não custou a tia perceber e dar um berro ao longe: - Menino, larga isso! Tu vai levar um choque! De pronto, largaram e se puseram a brincar novamente; o pensativo nem com tanta empolgação, pois havia algo que o incomodava mais naquele dia. Uma dentre as pirralhas dali, nada mais nada menos que a rainha da quadrilha, chamava a sua atenção; ele é que não chamava a dela – entediante!

O tempo passou... Os estudos avançaram, as tias mudaram, mas a admiração pueril persistiu. Talvez um “não!” mal dado possa até alimentar certas esperanças, ou mesmo o motor seja a reles fantasia. Sabe menino idiota? Pois é, esse se adjetivava assim. Depois duma tarde inteira, deitado ao chão fresquinho de cimento queimado, rabiscara algumas linhas melosas: um flerte encabulado. Talvez a provável fonte do material para tal frescura fosse os programas da TV. Pensava: - Se lá dá certo, por que não dar certo comigo?

Roubou das moedas de seu pai uma fortuna equivalente a cinco centavos. Pegou a cartinha, dobrou-a carinhosamente e ainda salpicou um bocado de desodorante em cima (cheiroso, daqueles que tem estampado um boi na embalagem de plástico, encontrado em qualquer bodega de esquina), o cheiro talvez chamasse mais atenção. Ao olhar a carta, durante as horas que faziam o intervalo da entrega, chega os olhinhos brilhavam. A expectativa: imensa!

De manhã cedo, deu-a a um de seus coleguinhas, conjuntamente com o pagamento pelo serviço, e eis que foi entregue a encomenda à moleca. Já não era a primeira carta, mas bem que poderia ser a primeira a ser lida. Ela andava acompanhada de outra "curuminha" troncuda e valente, que desde cedo já se pusera a mangar. A "rainha" olhou pro Don Juan com uma expressão intrigada; ele sorriu temeroso e até quis esboçar uma piscada. Não deu tempo! Nem sequer sentiu o cheiro do desodorante, nem mal pegou nas primeiras linhas da carta, já a entregou à sua escudeira, que encarou o moleque, fez pouco dele, e rascou-a em miúdos. Restou-lhe um tapa e o sobreaviso que, se teimasse em "enchê-la", teria mais de onde viera o presente. Quão violentas e grosseiras poderiam ser as meninas com as quais sonhara nas noites frias daquele inverno!

Frustrado o menino, persistiu romântico, e só, por um bom tempo. O tapa valeu, a lembrança também. A solidão não durou pra sempre. Há quem goste de cartas!... Talvez, desde que sejam pouco menos melosas, e sem o bendito desodorante!

Benedito Gomes Rodrigues

A escrita sem medos

Nas sociedades modernas, nas quais estamos inseridos, a escrita é imprescindível. A todo momento deparamos com textos escritos, tais como contos, crônicas, romances, poemas, nomes de ruas, jornais impressos, receitas médicas, nome de estabelecimentos comerciais, e-mails, nomes e dedicatórias em sepulturas etc.

Desde tempos imemoriais, a escrita tem alimentado a crença da superioridade cultural do povo que a emprega, sendo responsável pelo seu desenvolvimento político, social e também humano. Partindo dessa premissa, a "superioridade da escrita" adquiriu, especialmente na Grécia, outros enfoques: órgão responsável pela transcrição da fala; a superioridade do alfabeto, instrumento primordial do desenvolvimento cultural e científico; instrumento de desenvolvimento cognitivo, dentre outros.

No século XVIII, Gibbon afirmava que o: "uso de letras é a principal circunstância que distingue um povo civilizado de uma horda de selvagens, incapaz de conhecer e refletir". No entanto, a linguística moderna vem trazendo esclarecimentos acerca dessa suposta "supremacia da escrita", questionando se tudo não passaria de mitologia, na crença dessa superioridade, que passou ou passa a dominar nossa consciência comum.

Segundo os estudiosos, a escrita não constitui transcrição da fala, mas modelo para a própria fala, visto que os sistemas de escrita captam somente a forma verbal, deixando alguns outros elementos da comunicação subentendidos na fala. Ex: Na mensagem: "Estou tão feliz hoje!", dependendo da maneira, da entonação e da expressão facial de quem fala, haverá divergentes significados; tanto pode a pessoa estar literalmente feliz ou o contrário. A superioridade do alfabeto também tem sido questionada, por conta da sua utilidade limitada para representar uma língua monossilábica, como é o caso do chinês. Também foi reconhecido que as crianças orientais, em especial as japonesas, embora inseridas em culturas não alfabéticas, apresentam melhor desempenho na escrita do que as crianças ocidentais.

Nas últimas décadas, os antropólogos e historiadores forneceram informações concretas de que a cultura clássica grega era primordialmente dialética, ou seja, a linguagem e a argumentação orais eram utilizadas amplamente como instrumentos do conhecimento. Na era de Platão a escrita era muito limitada, não mais de dez por cento dos gregos sabiam ler e escrever. O desenvolvimento cognitivo, da mesma forma, não está limitado à escrita, pois se reconhece a alfabetização funcional, ou, mais precisamente, as formas de competência utilizadas para as atividades diárias que dependem tão somente das práticas particulares do indivíduo, em que não há utilização da escrita, como, p. ex., as habilidades de um operário de fábrica, da construção civil, de uma boa cozinheira, dentre outros.

Não obstante as informações e esclarecimentos em torno da problemática da escrita, é de fundamental importância o reconhecimento de que sua invenção foi e é por demais útil para a formação das sociedades clássicas e modernas. Graças à escrita, temos guardados tesouros em textos que repercutiram e repercutem no modo como vivemos hoje. Além disso, ela possibilita uma série de procedimentos para agir sobre a linguagem, como também pensar sobre ela, fato esse que contribui para podermos refletir e inclusive desmistificar a crença de sua superioridade.

Auricélia Fontenele
Da Pós-graduação em Português/Literatura